sábado, 25 de agosto de 2012

Alter-ego - Taim i' ngra leat

Eu quase podia ver seu reflexo no espelho. Ali, perto de mim, ainda me observando com aquele olhar zombeteiro, esperando alguma reação minha para ter uma justificativa qualquer de me agarrar em seu abraço forte e não soltar mais enquanto durasse a noite. Sua presença ainda me assombrava, dia e noite, instilando pitadas de loucura no que ainda restava da minha vida, da minha sanidade. A cada minuto, podia sentir os olhos quase negros que eu tanto amei me seguindo pelas ruas da cidade, enquanto eu procurava meu caminho, do nada para lugar nenhum.
Me lembrei do dia que nos conhecemos, eu almoçando comida japonesa com o pessoal da faculdade e ele tomando uma Guinness num barzinho ao lado, na Rua 24 horas. Ele me olhava, de um jeito que nunca tinham me olhado antes, quase como se eu fosse uma obra de arte a ser contemplada e a ser devorada também. Sempre o mesmo olhar malicioso e pervertido, divertido e desejoso. Me sentia uma deusa não tão santa. Eu era má.
No banheiro da nossa suíte, um quarto de hotel no centro - cenário de muitas noites mal dormidas e bem aproveitadas; eu via o quanto o espelho agora era frio, quando eu finalmente percebia que não tinha mais ninguém me esperando encostado no caixilho da porta, sorrindo. Abaixei a cabeça e chorei.
Senti o seu perfume, seu toque uma última vez. Ele me abraçava e me dizia, com um português de forte sotaque irlandês, que tudo estava bem. Me virei depressa demais tentando ainda ver, com um fio de esperança, seus cabelos castanho-claros desgrenhados, mas era uma ilusão. No desespero de amar, eu havia quebrado um frasco de colônia.
Ajoelhei, e peguei um daqueles cacos de vidro estilhaçados no chão. Era a colônia que ele tinha me dado, quando dividimos pela primeira vez um quarto de hotel, em Londres. Ele adorava quando eu usava aquele perfume. Nossas madrugadas londrinas eram insanas, ao som de Iron Maiden e Ramones. Todos os dias, ele me acordava, me beijava e me amava e tudo o que eu podia fazer era nada. Só permitia.
Tudo agora na minha vida era uma ilusão.
Hoje, eu acordei cedo e fui ver o mundo pela janela. Eu vi o nascer do sol, eu vi a cidade acordar sob meus olhos, eu vi o fluxo de carros se intensificando conforme as pessoas iam despertando e indo trabalhar. Eu vi a Torre Panorâmica brilhando na manhã e eu vi a Serra do Mar, sempre quieta e impassível. E, naquele momento, eu desisti.
O pedaço de vidro era frio nos meus dedos, e o cheiro de colônia era forte. Era francesa. Aquele caco vermelho chegava a ser engraçado, tão rubro quanto o meu sangue. A embalagem do perfume tinha sido uma rosa, agora era uma arma. Minha arma.
Olhei para frente e vi, mas dessa vez eu tive certeza. Era ele, e ele me chamava para perto de si.
O acidente tinha tirado de mim tudo o que eu mais precisava. O helicóptero que ele sonhava pilotar tinha caído e arrancado nossas vidas.
Eu já não chorava.
Peguei o caco de vidro com a mão direita e encostei no pulso da esquerda. Sem pensar muito, apliquei todas as minhas forças, todas as minhas dores e todos os meus desesperos naquele golpe final contra o fantasma que eu chamava, nas últimas semanas, de vida. Senti a ponta de vidro rasgando minha pele, minha carne e minhas veias, enquanto eu estraçalhava meu braço. Gritei.
Senti o fantasma da minha vida desvanecendo junto com o sangue que escorria e já tingia a cerâmica da suíte de um vermelho muito escuro. Soltei o pedaço de vidro e caí sobre a minha própria tinta rubra no chão. Fechei os olhos.
Só então eu acordei e vi ele, sentado ao meu lado. Me olhava como me olhou da primeira vez. Seus olhos, contas negras que revelam o infinito. E eu estava ali, no lugar que sempre pertenci desde a criação dos tempos. Nem Céu, nem Inferno. Um paraíso, só nosso, por toda a eternidade.

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